COLUNA

Márcia Costa ou ‘a importância de nomear e eternizar mulheres’

Thays Pretti

Nem um estado brasileiro chega a 25% de mulheres homenageadas em logradouros da cidade - mas somos metade da população mundial

Em 20.10.22

Você talvez não saiba quem é a Márcia Costa que dá título a este texto. Acontece. Nós, artistas, nem sempre alcançamos muito além da nossa tribo. Só com um grande golpe de sorte é que rompemos fronteiras e nos lançamos a um nível, digamos, nacional. Isso considerando ainda apenas as pessoas que gostam de arte, que são uma parcela pequena do país. E, de modo mais afunilado, as que gostam da nossa manifestação artística específica (literatura, teatro, dança, pintura etc.).

Assim, repito: sorte. Planetas que se alinham, um encontro casual com alguém que te apresente a alguém ou que te encaixe numa oportunidade tal. Também ajuda você ter nascido ou viver nos grandes centros, como São Paulo ou Rio. Ter a cor ‘certa’ na pele. Ter o peso e a aparência considerados ideais. Fazer parte de certa classe social. O esforço individual e a qualidade do próprio trabalho também contam muito, claro. Mas já vi gente excelente que se dedicava enormemente e que, sem os atributos anteriores, pouco se espraiou para além da própria comunidade.

Por mais que queiramos, o artista não se descola de como o mundo funciona, e é preciso reconhecer de onde a gente parte, o que nos impulsiona e o que nos atrasa no modo como estamos encaixados no quebra-cabeças social do mundo – até para lutar contra isso. Porque, dentro de como a sociedade é hoje, para que qualidade e esforço alcancem o efeito buscado, a gente também precisa do um tanto arbitrário beijo da sorte. A subida é mais íngreme para uns do que para outros.

Creio que seja somente por isso que alguns não conheçam Márcia Costa, uma mulher negra que iniciou sua carreira como atriz em Maringá no final dos anos 80 e atuou por mais de 30 anos em espetáculos apresentados não só, mas principalmente no estado do Paraná. É só por isso que sua dedicação e a beleza de sua atuação não chegaram a todos.

Por azar dessas pessoas, porém, já não será possível ver seu trabalho presencialmente. Márcia Costa faleceu no começo de 2022, em um acidente de carro. Houve comoção e parte da classe artística de Maringá e região se movimentou. Com ajuda de uma vereadora da cidade, apresentaram um projeto na Câmara de Vereadores para viabilizar uma homenagem. Assim, no dia 18 de outubro de 2022, com aprovação quase unânime, um aparelho cultural da cidade foi batizado com o nome dela, passando a se chamar Centro de Ação Cultural Márcia Costa. Uma conquista bonita e merecida.

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O que há, pois, em um nome?

Até há pouco tempo, pouco me importavam os nomes que tinham as ruas, praças e prédios públicos. Quase toda cidade tem uma rua Machado de Assis, uma rua Getúlio Vargas, uma Duque de Caxias, no meio de uma porção de outros nomes que nunca me disseram nada. Às vezes são artistas, sim, mas geralmente são nomes de políticos, pioneiros ou gente rica e influente a quem julgaram que talvez valesse homenagear.

Não tenho nada contra essas pessoas, certamente alguém gostou delas o suficiente para se empenhar numa homenagem. Mas, sem uma história que me conectasse aos nomes, eram apenas palavras vazias.

Márcia Costa, eternizada no local onde começou a atuar, me fez pensar muito sobre essas homenagens públicas. É claro que há outros nomes importantes que já haviam me impactado antes, como o de Marielle Franco, que passou a nomear ruas, praças, escolas e centros culturais, e, também em Maringá, o de Magó, uma bailarina vítima de feminicídio que deu nome a um teatro da cidade, além de outras homenagens. Mesmo assim, só agora passei por uma espécie de epifania. Isso também devido a uma postagem de Instagram do Baque Mulher, um grupo de maracatu de Maringá, que, ao celebrar a homenagem à artista, perguntou: ‘por que aqueles(as) que nomeiam os espaços públicos da nossa cidade nunca se parecem conosco?’.

Essa pergunta mexeu comigo. Então, tentei buscar na memória outras mulheres artistas que já foram homenageadas com nomes de prédios e ruas em cidades que eu conheço. De memória, pouco consegui encontrar além de escritoras como Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Cora Coralina ou Rachel de Queiroz. Em uma pesquisa rápida na internet, aumentei essa lista com nomes como Anita Malfatti, Lina Bo Bardi, Cacilda Becker e Patrícia Galvão. Descobri que há uma avenida no bairro Morumbi, em São Paulo, que ganhou o nome de Hebe Camargo. Bibi Ferreira, importante atriz brasileira, teve seu nome dado a um Centro Cultural no Rio de Janeiro.

Apesar desses nomes, minha sensação foi a de que era muito mais fácil encontrar homenagens a homens do que a mulheres. Para não dizer isso em voz alta sem embasamento – porque de fake news já bastam as que estão relacionadas à política -, busquei saber quantos logradouros no Brasil têm nome de mulher. Ainda que não tenha encontrado um levantamento geral do país, as pesquisas que achei só confirmaram a minha sensação de estarmos sendo muito mal representadas pelas ruas.

Segundo uma pesquisa bastante completa realizada pelo Medida SP, de um total de quase 70 mil logradouros da cidade de São Paulo, os que têm nomes de mulher ficam em torno dos 5 mil, contra quase 27.500 com nome de homens. Isso equivale a menos de 20% dos logradouros que homenageiam pessoas.

Além disso, há um padrão bem visível em relação a essas mulheres, que tendem a ser, em sua maioria, santas católicas, com quase 300 logradouros. O segundo lugar, com algo em torno de 150 homenagens, são ruas que carregam o título de “Dona”, provavelmente homenageando esposas de homens influentes do passado. Em terceiro lugar vem “professora”, com menos de 100 homenageadas, seguido por irmãs, madres, baronesas, princesas… Sim, mulheres artistas realmente representam uma fatia muito pequena nesse bolo.

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Outro ponto que me chocou muito foi a diferença em relação aos tipos de logradouros com nomes de mulheres e homens. Mulheres tendem a aparecer mais frequentemente como nomes de vielas, largos, estradas e travessas – ou seja, logradouros ‘de menor importância’. Apenas raramente nomeiam viadutos, avenidas, ruas, alamedas e praças.

Porém, a baixa porcentagem de mulheres em logradouros não é exclusividade de São Paulo. Em Recife, os nomes femininos estão em torno de 20%, e as mulheres são 7,5% das homenageadas em Curitiba. A (talvez não tão) bela cidade de Gramado consegue alcançar um número ainda menor, com apenas 4% de suas ruas com nomes de mulheres.

Considerando os estados brasileiros, o que tem mais mulheres em seus logradouros é o Amapá, com 23%. Na outra ponta, Piauí é o estado em que estamos mais mal representadas, com apenas 13% dos logradouros. Pensando que metade da população mundial é composta por nós, acho que esse número poderia ser bem maior, não é mesmo?

Seria uma obviedade dizer que a baixa representatividade feminina em logradouros reflete o machismo ainda presente na sociedade. Então, deixo não dito por dito e aprofundo ainda mais a questão: infelizmente, não encontrei muitos dados para avaliar quantos dos homenageados em logradouros são pessoas não brancas, por exemplo. Mas um levantamento feito pela Revista Capitolina apenas na cidade de Campinas aponta que, de 271 nomes, apenas 6 remetem a negros e datas importantes para a população negra. Apesar de ser uma amostra muito restrita, ela já nos ajuda a dar a cor das nossas ruas. Imagine então quão poucas dessas homenagens públicas se referem a pessoas indígenas, LGBTs… E assim vai.

Mesmo sendo essas pesquisas apenas recortes, já me sinto na posição de arriscar: as homenagens não refletem o todo da sociedade. Será que é plural que as ruas homenageiem principalmente homens brancos poderosos? Será que somente eles foram importantes para nossas cidades? Será que isso representa bem todas as nossas conquistas enquanto coletividade? Minha resposta é, definitivamente, não.

É também por isso que uma homenagem como essa realizada à Márcia Costa é fundamental. Sim, estou falando de uma cidade no interior do Paraná, e não estamos falando, nesse caso específico, de um logradouro. Mas uma mulher, artista e negra, ser homenageada e eternizada ao dar seu nome a um importante equipamento cultural da cidade onde atuou como artista é algo sem tamanho, que nos ultrapassa e atravessa de tal forma que não é possível que reste pedra sobre pedra depois disso. Márcia Costa é a história acontecendo diante de nossos olhos, e isso é muito mais importante do que ter ruas e prédios com nomes de duques ou marechais que nunca sequer colocaram os pés aqui.

É fundamental que nós, enquanto mulheres, lutemos para que isso aconteça em nossas cidades – sejam elas metrópoles ou mais afastadas e periféricas. Nomear é inscrever na história, é reforçar a importância – seja para o mundo, seja para sua comunidade. A homenagem dada a uma pessoa é também uma homenagem a quem, total ou parcialmente, se identifica com seus adjetivos.

Ainda que branca, eu, como mulher e artista, me identifico com Márcia Costa. Na eternidade dela encontro também a minha. E Márcia Costa está presente, agora e sempre, na cidade que a viu produzir arte.

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Márcia Costa em apresentação da peça Tempos de Cléo

Rafael Saes


Referências para o texto

Abaixo, algumas das matérias e pesquisas de onde tirei os dados que trouxe no decorrer do texto.

  • CBN Maringá – Centro de Ação Cultural é batizado com o nome de Márcia Costa
  • MedidaSP – Apenas 5 mil logradouros de São Paulo têm nome de mulher, contra mais de 27 mil com nomes de homens
  • Folha – Menos de 20% dos logradouros da cidade de São Paulo têm nomes de mulheres
  • MedidaSP – Há diferença em relação ao tipo de logradouro que recebe nome de homens e mulheres
  • Leia Já – Em Recife, as ruas com nomes de mulheres estão em torno dos 20%
  • Jornal Plural – Curitiba só deu nomes de mulheres a 7,5% de suas ruas
  • Donos da Rua – Apenas 4% das ruas de Gramado têm nome de mulher
  • Revista Capitolina – Somente 6 de 271 logradouros de Campinas referem-se a pessoas negras ou datas importantes para a população negra
  • Revista Piauí – Amapá é o estado com maior representatividade feminina em seus logradouros

Para conhecer a artista:

Entrevista da atriz ao Instituto Cultural Ingá




Palestra de Márcia Costa no TEDxParqueDoIngá


Artista conta sua trajetória no 2 Coelhos conversa

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.