CANVA
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“Enquanto o tempo acelera e pede pressa. Eu me recuso, faço hora, vou na valsa: a vida é tão rara.” (Lenine)
Em outubro próximo faço 60 anos. Legalmente, serei uma idosa, sujeita aos estereótipos negativos relacionados à velhice. Mas, na realidade, acho que já passo por isso desde antes de ser “oficialmente” idosa.
Estou aposentada e experimento as dificuldades da menopausa. Meu ninho já está vazio, pois meus filhos bateram asas e voaram. Não sou avó e talvez nunca seja, porque meus filhos alegam não ter vontade de trazer uma nova vida a esse espaço/tempo sombrio. Como tenho muito desejo de exercer esse papel, aproveito os netos das minhas irmãs.
Fui professora universitária por mais de trinta anos. Nesse período, privilegiei o desenvolvimento intelectual em detrimento do bem-estar físico e emocional. Hoje, pago o preço desse descuido. E tento focar no que deixei de lado. Na última década tenho me preocupado mais com autocuidado. Faço terapia, tento desacelerar e meditar. Sou muito ansiosa e tento criar estratégias diárias para lidar com essa característica, como o Pilates e a caminhada.
Sei que envelhecer não é apenas um fato biológico. É, primordialmente, um fato social, atravessado por fatores econômicos e culturais. Identifico em mim as modificações orgânicas decorrentes dos anos vividos, mas percebo que o modo como a velhice é tratada pela sociedade é determinante na forma como sinto o meu envelhecer. Não é fácil experimentar no corpo a finitude humana em uma sociedade jovencêntrica, que impõe padrões de beleza e prega a velhice como algo negativo e indesejável. Muitas vezes me sinto impotente diante das perdas que se mostram cada vez mais definitivas.
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Além disso, o Brasil também não tem sido muito generoso com o envelhecer. Os direitos previstos no Estatuto do Idoso (2003) são corriqueiramente desrespeitados. O Estado não tem cumprido sua obrigação de permitir um envelhecimento saudável, com dignidade e garantido por políticas públicas.
Eu, porém, faço parte de uma classe média privilegiada com acesso a plano de saúde, tratamento dentário, academia, alimentação de qualidade, entre outros cuidados. Exatamente na contramão do que assola a maioria da população. Posso me dar ao luxo de um envelhecimento mais assistido – o que, entretanto, não deixa esse momento mais fácil, já que o envelhecer envolve os mais diversos aspectos de nossas vidas.
Um exemplo é o quanto o envelhecimento afeta de formas diferentes homens e mulheres. Nossa cultura exige muito mais de nós, mulheres, quase nos negando o direito de envelhecer. É claro que o patriarcalismo e o machismo contribuem muito para rotular o envelhecimento feminino como algo negativo. Miriam Goldenberg, antropóloga, esclarece sobre isso quando afirma que “a velhice masculina é mais positiva, porque não é tão centrada na aparência do corpo. Os homens podem envelhecer, ter rugas, engordar e ter cabelo branco que não são tão cobrados”.
Essa diferença entre o envelhecimento feminino e o masculino também pesa em relação ao aspecto afetivo/sexual. Há muito preconceito com as mulheres mais velhas, que são, de certa forma, “apagadas”, como se não houvesse mais desejo ou necessidade de afeto. Ao mesmo tempo, muitos homens mais velhos seguem “interessantes” e ativos.
Ou seja, ainda que eu saiba que podemos viver nossos afetos e nossa sexualidade do modo como quisermos, mesmo na terceira idade, confesso ter um pouco de “preguiça”. Porém, esse desinteresse por relacionamentos não vem de uma não necessidade de afetos, mas, pelo contrário, da forma como a masculinidade vem sendo exercida na atualidade, o que tem sido, pelo menos para mim, um fator desestimulador para o estabelecimento de relações afetivas/sexuais.
Ao mesmo tempo, como as mulheres vivem mais, sei que também terei mais tempo para lutar e comemorar muitas conquistas. Ou seja, se por um lado experimento as perdas e o declínio que caracterizam o envelhecer, por outro, vivo os aprendizados e as transformações positivas dessa fase da vida.
Assim, valorizo tanto o resgate da história em geral para a construção de uma sociedade onde todos tenham voz e vez, como também todas as estratégias de recuperar nossa história pessoal (memórias e experiências) como guias para a constituição da nossa identidade idosa. Tento, então, escapar da prisão do eterno presente (essa tendência tão atual), da instantaneidade que suprime o passado e o futuro.
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Tenho muito orgulho do que vivi. Faço coro com Hannah Arendt quando ela afirma, em seu livro “Entre o passado e o futuro”, de 1972, que uma geração deixa legados à outra e eles são guias para nos posicionarmos no presente, como sujeitos da História.
Faço inventários das minhas vivências, ressignifico meu passado e procuro me conectar com aspirações coletivas por um mundo melhor. Penso que a preservação da minha identidade pode me ajudar a me adaptar às demandas do mundo externo e enfrentar com serenidade a perda progressiva da capacidade física e de todas as outras limitações impostas pelo envelhecimento.
Tenho laços familiares fortes, sempre tentando estabelecer relações de troca. O mesmo acontece com as amigas, mulheres empoderadas, de diferentes idades, profissões e personalidades. Sem elas, seria difícil aguentar esse mundão.
Hoje sou muito mais sensível aos acontecimentos cotidianos. Virei uma chorona. Mas isso não significa fraqueza. Chorar faz parte do meu processo de enfrentamento dos problemas.
Gosto muito de sair, ir a bares com os amigos, ir ao cinema, teatro, shows musicais, exposições, etc. Sou frequentadora assídua de padarias e cafés. Vou com amigos ou sozinha. Desenho, pinto, faço artesanato, costuro, cozinho, leio e escrevo. Devoro livros variados. Inclusive, faço parte de um clube de leitura, em que, além de conversarmos sobre os livros lidos, exercitamos a socialização.
Albert Camus (escritor franco-argelino, 1913-1960) disse que “são poucas as coisas que nos parecem absurdas quando passamos dos 60 anos”. Discordo totalmente. A longevidade só aumentou minha indignação com os absurdos decorrentes da desigualdade social. E não quero perder esse estranhamento.
Tento não ser preconceituosa, aceitar e entender a diversidade em todos os seus aspectos. Sempre me posiciono contra o racismo, a homofobia, a misoginia e a xenofobia. Sou eterna defensora da classe trabalhadora e dos mais vulneráveis. Gosto muito de política e de saber o que ocorre no mundo, no Brasil, no meu estado e na minha cidade. Assisto diariamente a noticiários e procuro acessar notícias impressas também. Não me canso de defender a educação democrática e de qualidade para todos.
Isso é envelhecer. E é exatamente por isso que é difícil de lidar com a exclusão social imposta aos mais velhos. Não somos um “estorvo” – aliás, em nenhum momento da vida. Aceitar isso, social e individualmente, é um grande desafio ao qual devemos nos dedicar sempre, até que a passagem do tempo deixe de nos ser tão cruel. Afinal, a única diferença entre jovens e idosos é que “temos nosso próprio tempo”, mas ele sempre vai adiante, e sempre há passado, presente e futuro sobre os quais pensar.
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Aliás, lembrei que tenho que retomar minhas caminhadas. Prometo que segunda-feira eu começo.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.