Thays Pretti
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É uma casualidade.
Em um milésimo de segundo, um espermatozoide encontra um óvulo e a vida se forma. Poderia ser outro, o que vinha ao lado ou logo atrás, o óvulo poderia não estar maduro, o gameta talvez não se prendesse à parede do útero ou se soltasse nos primeiros dias. Acontece, mas foi aquela combinação específica que “vingou”.
A princípio, não há nada que diferencie o feto que você é de um feto do sexo oposto, a não ser, nas profundezas da sua construção genética, um par de cromossomos.
Você é XX. Isso muda tudo.
Quando descobrem, compram roupas com laços e babados e enfeitam o quarto de cor-de-rosa, como se algo na estrutura das suas células clamasse por uma cor. Você não clama. Sua única atividade é se fazer gradualmente, em parceria com sua mãe. Você se preocupa apenas em existir, produzir seus braços e pernas e esôfago e pulmão, enquanto, do lado de fora do seu ovo, acumulam-se princesas e pelúcias com saias.
Por pura aleatoriedade, você nasce mulher.
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Olhando você nas mãos do médico, não seria possível dizer. Suas mãos pequenas poderiam ser tanto de um menino como de uma menina. Os pezinhos frágeis também. A moleira arredondada coberta de penugem, o corpinho enrugado de recém-nascida.
Ele diz “uma menina linda”, e é nesse momento que sua mãe começa a sentir medo.
Afinal, ela já é mulher há algum tempo e sabe o que é o mundo para as mulheres. Enquanto te enrola em mantinhas de tricô, pensa no quanto precisará te defender e no quanto você também precisará se defender, quando tiver autonomia para isso.
Ela te olha, um bebê como qualquer outro, sem nada que te marque como alvo. Ela te compara com o bebê de uma amiga, um menino. Não encontra em vocês qualquer motivo para um ter mais poder social do que o outro, não encontra em você qualquer motivo para sofrer assédios e violências.
Sua mãe observa os dois bebês, um menino e uma menina, e sabe que ambos deveriam ter direito de ser o que quisessem ser e fazer dos próprios corpos o que bem entendessem. No fundo, ela enxerga que a diferença entre vocês só existe porque nossa cultura, o capitalismo, a religião e mesmo a ciência deram (e ainda dão) seu quinhão para a criação de uma desigualdade que não se justifica racionalmente, especialmente no século XXI.
Apesar disso, como mulher, seu corpo segue sem te pertencer. Você nasceu mulher, e é como se isso bastasse para você não possuir a si. Suas roupas serão medidas, assim como seus cabelos. Seu pelos e peso serão julgados. Seu envelhecimento será visto com pena e desdém.
A Igreja e o Estado tentarão impor regras sobre seu útero.
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Você precisará ter um corpo dentro do padrão, mas deverá cobri-lo com recato. Exceto se quiser ser uma dessas aí… Nesse caso, seu corpo será ainda menos seu: ele será público. Carne. Mercadoria. Haverá quem se ache no direito de tocá-lo.
Só que, nesse caso, isso acontecerá mesmo que você se cubra dos pés à cabeça. Todas as mulheres precisarão se defender de homens que se acham no direito de tocá-las.
Todas.
Em casa, na rua, na festa, na escola, na igreja.
Na mesa de cirurgia.
Quando você nasce mulher, viver é exasperante. Você precisa enfrentar inimigos externos e aqueles que absorvemos inconscientemente – o medo, a insegurança, a sensação de não ser capaz, a necessidade de se construir por meio do olhar do outro. Você precisa se esforçar sempre mais, se proteger sempre mais.
Quando se nasce mulher, a dor de uma é também das outras. Porque, no fim, já que essas violências poderiam alcançar qualquer uma de nós, então quem as sente somos todas, em potência.
Este texto não traz otimismos. Não fala da “beleza de ser mulher”, esse conceito criado para tentar amenizar violências e dificuldades. Ser mulher é um ato de coragem – mas não deveria. Nosso corpo e nossas vontades deveriam simplesmente nos pertencer, assim como o corpo e as vontades de um homem lhe pertencem.
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Celebro e admiro todas as mulheres que estão presentes ou já passaram pela minha vida. As mulheres da minha família, minhas amigas, minhas colegas de trabalho. Minhas professoras, alunas, leitoras, as mulheres que eu admiro. O futuro está em nossas mãos. Mudar a sociedade não é simples, há muita coisa entranhada estruturalmente no nosso dia a dia, mas seguimos trabalhando nisso. Somos a revolução, já avançamos muito e avançaremos mais.
Ainda que provavelmente eu não chegue a ver isso, meu desejo é que, um dia, nascer homem ou mulher seja apenas o que realmente é: o acaso operando milagres.
Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.