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O conceito se tornou popular depois que a filósofa Djamila Ribeiro lançou o livro “O Que É Lugar de Fala?”, da coleção Feminismos Plurais. Nele, a acadêmica apresenta o feminismo negro discorrendo sobre o conceito de lugar de fala. Mas afinal, você sabe o que ele significa? Confira a seguir o que é e como ele impacta as relações sociais.
O que é lugar de fala
Para Djamila, lugar de fala se refere à discussão de poder a partir da localização de um indivíduo dentro da estrutura social. Em outras palavras, é a forma como cada pessoa se posiciona e debate questões sociais a partir do seu lugar social. Não se trata da experiência individual, mas das experiências comuns a grupos.
Para ajudar a explicar a diferença entre experiências individuais e coletivas, Djamila traz alguns exemplos, entre eles o racismo. Djamila diz que nem sempre uma pessoa negra consegue refletir criticamente sobre o racismo, pois nem sempre ela reconhece tal violência no seu dia a dia. “Mas o fato de essa pessoa dizer que não sentiu racismo, não faz com que, por conta de sua localização social, ela não tenha tido menos oportunidades e direitos”, conclui.
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“Outra teórica que abordou o conceito foi a socióloga Gayatri Spivak, que questionou se poderia o subalterno falar”, diz Sara Araujo, socióloga formada pela Universidade Estadual de Maringá e pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos.
Segundo Sara, Spivak também contesta a narrativa única que se consolidou ao longo dos anos e exige que vozes invisibilizadas sejam consideradas. Tais vozes ignoradas pertencem às minorias – pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres. Sejam os membros dessa minoria de classes economicamente favorecidas ou não, ainda que a classe social também influencie, instaurando-se uma outra hierarquia social. A autora ainda chama atenção para a violência que a narrativa única (vista a partir de homens brancos cisgêneros e heterossexuais) proporciona aos corpos subjacentes.
A importância do lugar de fala
O objetivo é trazer pluralidade aos debates, permitindo que grupos não-hegemônicos, historicamente excluídos do debate político, possam pautar discussões e contribuir para a quebra de um discurso universal promovido por uma sociedade branca, patriarcal, cisgênero e heterossexual.
Além disso, “um dos benefícios para os grupos historicamente subalternizados, é ter consciência de que a margem também produz e que eles podem e devem reivindicar e fazer disputa de narrativas”, afirma Sara. Essa disputa de narrativas nada mais é do que apresentar o outro lado da história, contestando versões únicas de uma mesma situação.
Mas se engana quem acredita que o lugar de fala é um conceito voltado apenas para as minorias. Grupos privilegiados também podem se beneficiar, pois todo mundo têm um lugar de fala. Segundo a filósofa, esta é uma oportunidade para refletirem sobre suas posições de privilégio, seja por raça, gênero, sexualidade e classe, por exemplo.
O lugar de fala é sempre o mesmo?
Conforme o livro de Djamila Ribeiro, algumas hierarquias sociais podem mudar, outras não. Por exemplo, segundo a autora, o lugar de fala com base na raça de uma pessoa não muda, mas quando esta sai de uma situação de pobreza para uma situação de riqueza, há um novo lugar de fala.
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Essas mudanças na localização social permitem constantes reflexões sobre hierarquias sociais e pertencimento a grupos, bem como são capazes de promover empatia ao compartilhar novas experiências coletivas, ampliando o debate.
Lugar de fala x representatividade
Lugar de fala e representatividade são frequentemente usadas como sinônimas, mas não são. Porém, são ideias que se complementam. Para falar sobre feminismo, não é necessário ser mulher. Para falar sobre racismo, não é necessário ser negro. O debate se constrói permitindo que todas as experiências sejam consideradas, mas o enfoque maior em quem é pertencente ao local social de tal opressão traz um enriquecimento ao debate. É aí que entra o conceito de lugar de fala.
Já representatividade dá forças para que mais pessoas que se encontram em determinado lugar social saibam que também têm direito ao discurso. Ela amplia a potência da voz de grupos sociais geralmente silenciados.
Aqui se trabalha também o lugar de escuta, conceito associado ao lugar de fala. Ao permitir que grupos excluídos do debate falem, grupos privilegiados exercem esse lugar de refletir a partir da fala do outro. Na prática, eles estão conectados.
Esses conceitos são formas de censura?
A má interpretação das ideias de lugar de fala e representatividade gera uma falsa associação à censura. Isso porque, ao restringir equivocadamente esse debate às vivências individuais (excluindo as experiências coletivas), não haveria espaço para um debate entre aqueles que não compartilham tais vivências. Ou seja, uma pessoa cisgênera não poderia falar sobre transfobia, pois nunca passou por isso e nunca irá passar.
No entanto, para Sara Araújo, o que ocorre é o contrário: não são as minorias que excluem grupos hegemônicos. A difusão dessa má interpretação é, na verdade, uma estratégia de silenciamento de grupos hegemônicos. “A má interpretação é feita de forma intencional por grupos politicamente autorizados a falar ou que detém o poder do discurso”, para silenciar grupos oprimidos, afirma a socióloga.
Segundo ela, esses grupos “vêm se utilizado do conceito de lugar de fala de forma equivocada a fim de evitar o debate político e como arma de silenciamento e manutenção de seus status quo e privilégios dentro do tecido social”, fazendo que o conceito ganhe uma má fama, quando, na verdade, ele aceita a participação de todos no debate, apenas reforça a importância da experiência e do lugar social na compreensão das opressões.
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O papel dos movimentos sociais
De acordo com Sara, movimentos sociais são “instrumentos vocalizadores de política horizontal, onde as pessoas falam e escutam, articulam e realizam”. A socióloga explica que o Brasil é um país que possui tradição nessas lutas, trabalhando para que políticas públicas sejam pensadas e implementadas:
“Há séculos, grupos minoritários politicamente se reúnem em prol de reconhecimento de direitos e pela dignidade humana, seja pelo reconhecimento da vida, moradia, escola, trabalho, saúde, segurança pública. São exemplos de demandas pleiteadas por grupos cujas políticas partidária/institucionalizadas e verticalizadas não alcançam.”
Graças a essas lutas, direitos foram conquistados. Sara cita alguns desses direitos como o Provimento 73/2018, permitindo às pessoas trans pudessem realizar a retificação de prenome e gênero e o direito à moradia digna conquistada pelo Movimento Sem Teto do Centro, de São Paulo, que permitiu que pessoas em situação de rua morassem num prédio antes abandonado.
Quer se aprofundar em alguns movimentos? Leia mais sobre a invisibilidade da população LGBTQIA+ e o movimento Body Positive.
Fernanda Paixão
Comunicadora, voluntária e empreendedora. Apaixonada por moda, leitura e horóscopos. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela PUC-Rio, com domínio adicional em empreendedorismo.