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Apesar de considerar o título de “rainha do roque enrow” meio brega, Rita Lee Jones foi uma das maiores artistas do Brasil e uma referência em ousadia e autenticidade para gerações de mulheres. Em 60 anos de carreira, a Santa Rita de Sampa construiu um legado artístico e de libertação que estará para sempre marcado na cultura popular brasileira.
Filha de pai estadunidense e mãe italiana, Rita nasceu em 31 de dezembro de 1947, em uma São Paulo inserida num contexto de imigração pós-guerra. Caçula da família, a garota teve uma criação rígida, mas que possibilitou que explorasse a sua criatividade e talento junto das irmãs e da mãe, que incentivava brincadeiras de faz-de-conta, teatros e diversão musical quando o marido estava em viagem.
Apaixonada por Peter Pan, tinha devaneios com a Terra do Nunca e se sentia um menino perdido, sendo muito diferente do que esperavam dela. Desde muito nova, Ritinha gostava de pregar peças, cantar paródias infantis com palavrões e causar confusão nas escolas. Em um desses casos, ela pôs fogo no cenário da peça por não ser escolhida como protagonista. Como ela mesma dizia, “nunca [fui] um bom exemplo, mas era gente fina!”. A verdade é que a artista sempre teve pinta de estrela e transbordava no espaço limitado que tentavam lhe prender.
“Pra pedir silêncio, eu berro. Pra fazer barulho, eu mesma faço.”
– Rita Lee
O primeiro contato de Rita com a música foi por meio de seu pai, que era dentista e atendia pessoas famosas e influentes do Brasil e do mundo. Ele teria estabelecido um acordo com Magda Tagliaferro, uma grande pianista, para dar aulas à filha em troca de atendimento.
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Além do instrumento clássico, Rita arriscou na bateria e violão durante a adolescência, mas se encontrou mesmo nos vocais. Antes de ser tornar A Rita Lee – assim mesmo, com “a” maiúsculo -, ela foi integrante do quarteto feminino Teenage Singers e do grupo O’Seis, onde conheceu os irmãos Sergio e Arnaldo Baptista, os quais se tornaram seus melhores amigos.
A realidade dos Baptista era um pouco diferente da sua: filhos de artistas e com conexões políticas, eles tinham liberdade dentro e fora de casa. A experiência deu a ela – que foi criada com rigidez – um gostinho a mais de independência e rebeldia que sempre correram em suas veias. Juntos, os três formaram Os Bruxos e começaram a investir na carreira musical.
A década de 60 foi marcada por grandes programas de TV e festivais de música que apresentavam as maiores promessas artísticas da época. Foi nesses espaços que personalidades como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, Nara Leão e com Os Bruxos, não foi diferente. O grupo chamou a atenção dos produtores da Record, que convidaram a participar dos programas Astros dos Discos e Jovem Guarda.
Com “Os Mutantes”, novo nome do trio com os Baptistas, Rita foi apadrinhada por Ronnie Von, que os apresentava como “alienígenas que invadiram a Terra” e se tornou figurinha carimbada nos programas de talento. Em suas aparições na TV, Rita descobriu outra paixão: as roupas irreverentes. “[…] Aceitei me transformar em para-raios de freaks, porto seguro dos rebeldinhos sem causa, musa dos perdidos numa noite suja da Pauliceia”, escreveu em sua autobiografia. O importante, para ela, era não se levar a sério.
“Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer.”
– Rita Lee
Rita assumia sua teatralidade inata nos palcos, ao dar vida a suas personagens extravagantes. Ela já se apresentou como miss, vampira, Nossa Senhora Aparecida, Pocahontas, gatinha… A artista criou uma identidade estética própria que só poderia ser assumida por sua personalidade visionária.
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Caindo quase de paraquedas na fase embrionária do movimento tropicalista, com a benção de Gil, Rita levou a sua originalidade contraventora a um dos movimentos mais revolucionários da história da música brasileira. Rejeitados pelos mais tradicionais, fãs da viola e violão, a galera do som elétrico, barulheira e roupas esquisitas ganhou força e maior reconhecimento no fim dos anos 60, com suas experimentações artísticas percursoras do que viria a se tornar o rock brasileiro.
Os anos 70 foram marcados pela carreira solo de Rita Lee, com o lançamento do álbum “Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida”. Em 1974, a artista lançou “Atrás do Porto Tem uma Cidade” e, em 75, “Fruto Proibido”, considerada a sua obra-prima e que alavancou a sua carreira, a eternizando como a Rainha do Rock.
Experimentando com classic rock, blues, MPB, psicodelia, guitarras e violão acústico, a artista fez parcerias com o grupo Tutti Frutti, Paulo Coelho, Raul Seixas, Elis Regina, Gilberto Gil, Cássia Eller, Caetano Veloso, Tom Zé, Zélia Duncan e muitos outros nomes de potência na música brasileira. Ao todo, foram 29 álbuns lançados sob seu nome que a consagraram como uma das maiores artistas do país, impactando a produção artística nacional.
A postura contracultural e combativa de Rita Lee a fez carregar o infeliz título de compositora mais censurada da ditadura militar, que ocorreu entre 1964 e 1985. A preocupação em manter a “moral e bons costumes” era tão grande quanto a repressão aos opositores políticos e canções de protesto de artistas como Chico Buarque.
“Acredito que os ‘home’ da censura me viam como uma Maria Madalena que gostariam de apedrejar.”
– Rita Lee
Diversas composições de Rita foram vetadas, sendo necessária a revisão dos conteúdos ou descarte das produções. A artista já afirmou em entrevistas que os censores a davam “muita dor de cabeça” e, por vezes, era mais fácil desistir das canções barradas. Ainda assim, a cantora dizia não achar que o que ela fazia se tratava de feminismo: ela entrava impetuosamente no universo considerado “masculino”, cantando o que sentia vontade; de menstruação a menopausa; de “trepada” a orgasmo. Fazia sempre o que “dava na telha” e isso era considerado um “perigo” para o governo da época.
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A artista, além de cantora, musicista e compositora, também foi escritora de sucesso, produzindo três autobiografias e séries de livros infantis. Conheça o outro lado de Rita Lee, que nunca deixou de experimentar diferentes linguagens, dedicado à literatura:
Todas as mulheres do mundo são meio Rita Lee; meio santas sinistras, meio ministras malvadas. Rita se vai, mas seu legado é permanente e há muito o que celebrar de seus 75 anos vividos intensamente.
Comunicóloga Multimeios, pós-graduanda em Gestão de Projetos, aficionada por Estudos Culturais e educação midiática. Curiosa pelo mundo e uma otimista ingênua.